O documentário vira Fernanda “ao avesso” e somos imersos na mente da escritora e roteirista
Fernanda Young veio a falecer neste dia, há exatos 5 anos atrás. O documentário que estreia dia 29 de Agosto levou anos para ser produzido e projeto quase foi abandonado.
Ouvimos falar mais dos documentários que categorizam os eventos externos da vida de uma pessoa e como eles afetavam o seu interno. O documentário Foge-me ao Controle, no entanto, faz o caminho inverso e nos documenta a mente de Fernanda e como isso se manifestava na vida externa.
A linha que a obra segue é a de um documentário poético, ao invés de um documentário biográfico, como é mais comum de se ver. Ele é feito como colagens de trechos dos programas que participou e apresentou, leitura de seus poemas, anotações e desenhos. O longa-metragem foca mais em Fernanda como artista. E acima de tudo, humana, porque Young é humana elevada à décima potência.
Mas a obra não se limita à sua arte. Até porque o artista na verdade é moldado por esse olhar “de querer ver” e não necessariamente por suas obras. E Fernanda estava sempre atenta. E querendo ver. Tanto a si mesma quanto ao outro, e tirava daí suas ideias para personagens brilhantes e queridos, como Rui e Vani.
O lado avesso:
A parte que mais me atrai em biografias (ou obras com elementos biográficos) de artistas é que suas obras compõem um universo tão curioso e bonito. E normalmente eles compartilham pequenos relances de semelhança. Quando você conhece a obra de Fernanda Young, e toda pessoa que assistiu tv nos anos 2000 conhece, assistir “Foge-me ao Controle” é como virar uma camisa bonita pelo lado avesso e observar as costuras conectando todas as partes juntas. Os Normais, Minha Nada Mole Vida, Aspones e por aí vai. E aí, de repente, você vê que é a Fernanda ali, em cada diálogo perspicaz, em cada miudeza da vida cotidiana, que é “tão a gente” que te faz duvidar que é encenação, e não realidade.
Eu lembro da sensação de assistir pela primeira vez à fala da Vani (Fernanda Torres) na cena da chapinha de “Os Normais“, a personagem narrando como sempre está lutando contra si mesma de alguma forma, como se fosse sempre sua própria algoz. Me lembro de pensar que nunca tinha visto algo na tv que me visse tão bem assim, de um jeito tão direto e certeiro assim. Eu era só uma criança, quase um bebê quando essa cena foi ao ar pela primeira vez. E é louco pensar que, se na minha adolescência diálogos tão abertamente existenciais assim eram raros, na época em que foram exibidos pela primeira vez, eram mais raros ainda.
Não à toa Fernanda ganhou fama de “controversa” e “polêmica” nos anos 2000, por falar em rede nacional no “Saia Justa” assuntos que hoje debatemos com os amigos casualmente na mesinha de um bar. Creio ser esse um de seus maiores legados: tratar com a devida naturalidade de conversa de bar assuntos que não se falava sobre na tv, e às vezes nem fora dela.
Sobre a bravura de ser vulnerável:
A obra de Fernanda, seja com seus personagens ou suas falas e pautas como apresentadora sempre são vulneráveis, viscerais. O documentário ressalta como era uma preocupação e meta dela falar o indizível, a importância da verdade (mesmo quando não é muito bonita) e de se mostrar como se é, e não como queremos ser percebidos pelo outro. Há uma citação dela sobre seu próprio relacionamento que diz “O amor é não precisar se proteger do outro”. Neste sentido, é impossível não comentar a capacidade do documentário de ser, assim como a própria obra de Young, instigadora de autoconhecimento.
Porque você começa a assistir pensando que vai conhecer mais sobre a Fernanda Young mas, no meio do caminho, acaba conhecendo mais sobre você mesmo também.
Considerações finais:
O documentário não escapa de alguns defeitos, como certas inconsistências na narrativa. Já que mesmo não sendo a proposta ser totalmente linear, objetivo e biográfico, é dever de um documentário elucidar certos fatos. Especialmente se se propuseram a incluir aquela informação no corte final.
Como exemplo, existe uma lacuna que não é respondida quando é dito que Fernanda só terminou o ensino médio com 23 anos. Antes disso, ela conta que tinha muita dificuldade na escola porque tinha dislexia. Então dá a entender que talvez tenha tido relação com a dislexia, mas não explica se ela apenas foi repetindo as séries até completar 23. Pesquisando na Wikipedia, você facilmente encontra a informação de que ela só se formou aos 23 porque saiu da escola após um caso de abuso sexual que a traumatizou.
Como a maior fonte de material inédito presente em Foge-me ao Controle foi cedido pela família, seria compreensível argumentar que eles não quiseram abordar o tema. O que seria válido, mas o documentário menciona o acontecimento. Então por que não elucidar que depois disso, ela passou alguns anos afastada e aí sim finalizou o ensino médio?
Um outro defeito é que às vezes a narrativa parece girar um pouco em círculos. E essa sensação aumenta com o fato de o documentário ter aproximadamente 1h30 de duração.
Ainda assim, Foge-me ao Controle é uma obra competente naquilo que se propõe. E é importante frisar que ela não se propõe a ser uma linha do tempo da vida da Fernanda, uma enciclopédia sobre seus trabalhos e vida pessoal. Não se trata de algo resoluto, uma obra ponto final. O longa-metragem deixa o caminho aberto para questionamentos que eram importantes para Fernanda e estiveram extremamente presentes na sua obra, como: saúde mental, amor, feminismo, vulnerabilidade e identidade.
Acima de tudo, “Foge-me ao Controle” nos mostra que talvez o lado avesso seja o lado certo.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Susanna Lira
Duração: 87 minutos
Ano: 2024
Nota: 6.5/10
Uma enciclopédia humana de comédias românticas. Tenho gosto musical duvidoso e gosto de fingir que estou em um talk show enquanto lavo a louça. Quando não estou assistindo a filmes, estou fazendo miniaturas deles.