Guto Pasko justifica a necessidade de mais um filme sobre a ditadura na filmografia brasileira.
Nesta quinta-feira (22), chega aos cinemas o longa “Entrelinhas”, uma produção da GP7 Cinema em parceria com a distribuidora Elo Studios. O filme se passa em 1970, em Curitiba, Paraná, e conta a história de Ana Beatriz Fortes, uma jovem de 18 anos de idade que foi acusada de participar de grupos estudantis subversivos e de pertencer à VAR-Palmares, uma célula guerrilheira que lutava contra a ditadura. A entrevista aconteceu no tapete vermelho da pré-estreia com o Guto Pasko (diretor), Andréia Kalaboa (produtora), Daniel Chagas (ator), Gabriela Freire (atriz) e com a própria Ana Beatriz.
Você ficou mais de 15 anos pensando nesse projeto. O que te motivou até aqui?
Guto Pasko: A história chegou nas minhas mãos 24 de agosto de 2005. A gente tá laçando o filme oficialmente 22 de agosto de 2024, estamos falando de dezenove anos. Isso ilustra como o é complexo produzir cinema no Brasil, podemos começar essa reflexão por aí. Esse tipo de história não é simples de levantar financiamento, a gente tá lidando com uma temática espinhosa, independente do lado ideológico que as pessoas estão. Não é um filme que levanta uma bandeira, ele trabalha com os fatos, que aconteceram em 1970. Cinema no Brasil é sempre um desafio muito grande. A palavra chave sempre é resiliência, a gente tem que saber porque contar a história daquele filme. Por que contar mais um filme da ditadura militar? Sendo que não é um assunto desconhecido na nossa filmografia, o cinema brasileiro já retratou muito bem a ditadura, mas não essa história. Me interessava contar esse recorde, uma vez que ele sai do eixo Rio e São Paulo, se passa no Paraná. Um filme sobre uma personagem completamente anônima, não é nenhuma figura militante, personalidade ou liderança. É uma estudante de 18 anos absolutamente anônima. Há uma reflexão a ser considerada: Quantos anônimos foram torturados na ditadura militar? Este filme para mim faz muito sentido para o Brasil atual.
Foram mais de 2 mil atores participando dos testes. O que levou vocês a escalarem a Gabriela Freire?
Guto Pasko: Foram 2.100 atores de todo o Brasil, temos 39 atores no filme. É muito difícil da gente escalar jovens atores. Eu comecei como ator, e a minha direção tá muito pautada na atuação, já que eu venho desse lugar, sou bastante meticuloso. Tivemos um processo cuidadoso e moroso, totalizando 8 meses. Para a personagem da Ana Beatriz, foram testadas 181 garotas, divididas em quatro fases. O que me fez escolher a Gabriela que é do Maranhão, foi o fato dela tão jovem ter uma graduação em artes cênicas. Tem muita gente que faz um curso de esquina e já acha que é ator porque tirou o DRT. Eu sempre afirmo que há muitos decoradores de texto no mercado, ser ator é outra coisa. Ela já terminou a graduação em artes cênicas e já começou a estudar psicologia para complementar a sua formação como atriz. É importante considerar que ela também é psicóloga para lidar com uma personagem tão complexa psicologicamente. Esse foi o peso da balança.
O quão importante Entrelinhas é para o povo brasileiro atual?
Andréia Kalaboa: Eu acho que o Entrelinhas trás uma discussão muito importante nesse momento de muita polarização no país. Falam de questões de até uma volta da ditadura. Então eu acho que trás essa reflexão do que é uma censura e uma repreensão, mas não estamos discutindo isso só no Brasil, mas na América Latina e não importa se a ditadura é de esquerda ou direita, no nosso caso retrata a de direita, mas ditadura sempre vai ser ditadura.
Daniel Chagas: Bom, o Entrelinhas conta uma história real e que não estava conhecida até então, mas ela é uma dentro de milhares que aconteceram neste país. Os personagens que são retratos nessa história não só aconteceram no Paraná, mas no país inteiro. Entrelinhas não fala de um lugar só, ele expande para cada recanto desse país e que não foram reveladas e morreram nos porões. É um recado para quem acha que naquele momento era melhor, um lugar de ordem e paz, pelo contrário, não era. É o que o filme retrata, sem politizar a questão mas apenas retratando os fatos. Mostra como o exército e o governo, em conjunto, lidavam com quem pensava diferente, agia diferente ou apenas queria viver sua vida. Entrelinhas tem a potência de iluminar o renascimento desse pensamento neste momento.
O que o público pode esperar de Entrelinhas?
Andréia Kalaboa: Olha, vou responder sobre um ponto de vista de produção. A história do filme se passa no Paraná, elenco diverso de várias regiões do Brasil. É possível notar uma diversidade em tela, que foge do eixo Rio e São Paulo.
Qual foi sua principal reação, ao saber que sua história seria adaptada para os cinemas?
Ana Beatriz Fortes: Olha, faz tantos anos que Guto me procurou para fazer, aí eu contei a história toda e, não tínhamos muita certeza se ia acontecer, o Guto tava tentando. Foi interessante, mas para mim é sempre uma coisa pesada, não é muito agradável relembrar.
Qual sentimento o filme te provoca hoje quando você o vê inteiro?
Ana Beatriz Fortes: É importante para contar paras as pessoas, mesmo sendo paradoxal para mim. Tem muita gente alienada aí, que não sabem de nada. Através da arte a gente pode passar muita coisa, mais sútil, mas é uma forma de comunicar.
O quanto da sua personagem tem em você, e o quanto você colocou nela?
Gabriela Freire: O processo para descobrir ela foi de muito estudo do contexto histórico. É uma mulher de dezoito anos que tá ali descobrindo a vida em uma fase de tanta repressão, não tenho a idade dela, mas é uma mulher passando por um ambiente de muita repressão é totalmente masculino, são situações conhecidas por toda mulher. Busquei muito desse sentimento, e da coragem da Ana Beatriz, conhecer ela foi muito inspirador e me mudou como pessoa. Ver a generosidade dela para compartilhar sua história me fez entender o quanto essas experiências não devem mudar a gente, devemos continuar abertas e generosas para o mundo. O filme me trouxe muitas coisas novas.
Qual foi o maior desafio em interpretar Ana Beatriz?
Gabriela Freire: Tem cenas difíceis, como o trabalho do ator de se manter em cenas tão pesadas e violentas, mas, ao mesmo tempo, é um filme que trás uma responsabilidade. Talvez essa seja a minha maior dificuldade em compreender que estava assumindo uma responsabilidade muito grande, tendo que lidar com o medo.
O que o público pode esperar de seu personagem? Daniel Chagas: Bom, o major é um agente do exército brasileiro, ele é o condutor das ações do filme sobre a investigação da Beatriz, e esse personagem tá cumprindo seu dever em nome daquilo que acredita. Por isso, foi importante construir um personagem que não fosse mal puramente, ele tem um motivo, propósito e acredita naquilo. No decorrer a gente construiu uma ligação com a personagem da Beatriz de empatia e de humanização, não para o personagem ser perdoado, pelo contrário, não há perdão pelo que ele fez, mas humaniza o personagem o torna possível para está em qualquer lugar desse Brasil lá e hoje.
Entrevista feita por Luca Rossini.